A dor da gente não sai no jornal

Opinião

10.06.2021

*Josué Modesto dos Passos Subrinho

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) promoveu, no último dia 2 de junho, uma reunião virtual com a participação do governador Belivaldo Chagas; da vice-governadora Eliane Aquino; da secretária de Inclusão Social, Lucivanda Nunes, e do secretário de Estado da Educação, do Esporte e da Cultura, Josué Modesto dos Passos Subrinho. Na reunião, o UNICEF apresentou o seu estudo sobre os impactos do longo fechamento das escolas no Brasil em decorrência da pandemia da Covid-19 sobre as crianças e adolescentes em seus aspectos educacionais, emocionais, segurança alimentar, saúde e violência doméstica.

Florence Bauer, representante do UNICEF no Brasil, chamou a atenção para o fato de o Brasil estar entre os países que por mais tempo mantiveram as escolas fechadas como forma de combater a circulação do vírus. Nos países que observam a prioridade da educação, as atividades presenciais das escolas são suspensas apenas nos momentos mais críticos e são as primeiras a retornar, assim que há melhorias nos indicadores sanitários. No Brasil, pelo contrário, consolidou-se o padrão de interrupção generalizada das atividades presenciais e de expectativas de retorno apenas em um futuro indefinido, após a completa eliminação da pandemia, com fixação de critérios sem respaldo em estudos científicos, a exemplo da exigência de vacinação de crianças e, adicionalmente, da superação de situações com as quais as escolas vinham convivendo, tais como a insuficiência de pessoal de apoio e precariedade das estruturas físicas. Por outro lado, fez-se efetiva a pressão de setores econômicos para a rápida liberação de atividades, algumas das quais conexas à educação, a exemplo das esportivas, culturais, religiosas, de entretenimento e de lazer.

Em 2020, a SEDUC de Sergipe e parte das secretarias municipais de educação, a exemplo de suas homólogas em outros estados brasileiros, tentaram uma rápida adaptação à desconhecida situação da pandemia. Antecipamos o recesso e as férias previstas no calendário escolar e começamos a disponibilizar material em formato digital para manutenção dos vínculos dos estudantes com suas escolas, elaborando atividades não presencias complementares, conforme autorização do Conselho Estadual de Educação. Posteriormente essas atividades não presenciais tornaram-se obrigatórias, em observação às autorizações do Conselho Nacional de Educação e do Conselho Estadual de Educação. Muito foi exigido dos técnicos, das professoras e professores, dos parceiros institucionais, especialmente de secretarias estaduais de educação que já tinham larga experiência em ensino a distância. Aulas passaram a ser transmitidas em canais de televisão e programas de rádio; um portal foi organizado para armazenar conteúdos pedagógicos e roteiros educacionais; o acesso a esse site foi liberado sem gasto de dados pelo usuário para professores e estudantes da rede estadual e, por fim, mais recentemente, um novo auxílio para a educação conectada foi disponibilizado a fim de que professores adquiram equipamentos, no valor de até R$5.000, e contratem provedor de internet, com ressarcimento de até R$ 70 mensais.

Transformar rapidamente projetos e práticas pedagógicas exclusivamente presencias em exclusivamente remotas exige condições a que não podíamos atender plenamente. Como a simples capitulação às dificuldades não era opção compatível com o compromisso com a escola pública e com seus estudantes e familiares, tivemos de enfrentar, inclusive, a percepção da gritante insuficiência.

Em contrapartida, havia uma resistência organizada potencializada pela inércia própria do nosso sistema que recusava todas as formas de atividade remota. Alegavam ser mais adequado prolongar o calendário escolar e retornar às atividades presencias após a superação da pandemia. Alguns de nossos municípios não conseguiram desenvolver qualquer atividade remota, nem mesmo a distribuição de material impresso, que foi acusada de ser perigosíssimo vetor de transmissão viral, infenso a qualquer protocolo de segurança sanitária.

Não obstante todas as resistências, conseguimos reabrir as escolas para atividades presenciais da terceira série do ensino médio. Havia a pressão da data de realização de um evento de nível nacional, o Exame Nacional do Ensino Médio, principal via de acesso ao ensino superior. Protocolos de segurança sanitária foram aprovados pelas autoridades de saúde, recursos do Estado e, em proporção menor, do Governo Federal foram repassados às escolas para aquisição de insumos, equipamentos e adaptações necessárias ao cumprimento das normas de segurança e, finalmente, comitês escolares para acompanhar tais condições foram organizados. Os resultados que estamos comemorando na aprovação de nossos estudantes no acesso ao ensino superior se deve a essa combinação de ensino remoto e atividades presenciais, sob controle nas condições da pandemia e, principalmente, a nunca confundir desengajamento de nossas obrigações com a absoluta necessidade de defesa da vida. Uma pequena observação, conseguimos no clima de “adia ENEM” expandir a inscrição de estudantes da escola pública em 20% em relação ao número de inscritos do ano anterior.

No momento estamos concluindo o primeiro semestre letivo do segundo ano da pandemia, praticamente sem aulas presenciais, salvo as que foram ministradas entre 10 de fevereiro e 16 de março de 2020 e as já mencionadas da terceira série do Ensino Médio. O Comitê Técnico-Científico de Acompanhamento da Covid-19 autorizou o retorno às atividades presencias da Educação Infantil e primeiro e segundo anos do Ensino Fundamental, ao tempo em que os municípios avançam na vacinação dos trabalhadores da educação, começando pelos envolvidos diretamente na etapa e séries com autorização de funcionamento presencial. A adesão das escolas públicas ao retorno das atividades presenciais é, até o momento, pequena. Há articulações, em consonância com o estudo do UNICEF de retorno organizado das atividades presenciais até, no máximo, o próximo mês de agosto, conciliando segurança sanitária na abertura das escolas com a preocupação com os diversificados danos sofridos, especialmente pelas crianças e jovens, decorrentes do longo período de afastamento do ambiente escolar.

Florence Bauer, na citada reunião, enfatizou que as crianças e suas necessidades e desejos não são vistos e ouvidos pelos que decidem os formatos de funcionamento de nossas escolas. Quanto mais pobre, mais improvável que elas sejam vistas e ouvidas de forma adequada. Possivelmente, o mais grave trauma que uma criança sofre na escola é a dificuldade na alfabetização. Se esta não é efetivada na idade prevista, a criança será estigmatizada, perderá o interesse pela escola e, principalmente, não conquistará a autonomia no processo de estudar e aprender. Mas o que dizer de um sistema escolar em que a imensa maioria das crianças não são alfabetizadas na idade apropriada? O trauma individual transmuta-se numa profunda chaga social. Certamente todos os educadores deveriam estar debruçados sobre esse obstáculo fundamental que marcará a trajetória da criança e de camadas sociais inteiras.

O leitor pode não ter sido advertido quanto à gravidade desse problema, seus colegas se alfabetizaram com maior ou menor dificuldade na mesma idade, seus filhos e netos lhe dão orgulho pela precocidade e brilhantismo no domínio das letras, das palavras, dos números e das operações aritméticas, prenunciando carreiras escolares dignas dos seus esforços e dos deles.

Ocorre que não ser alfabetizado na idade certa é um fator que marcará os limites das realizações materiais de cada pessoa. Na Avaliação Nacional da Alfabetização, realizada em 2016, constatou-se que apenas 50% das crianças estavam adequadamente alfabetizadas no terceiro ano do Ensino Fundamental. Isto provoca, até hoje, vergonha e debates entre os educadores brasileiros. Em Sergipe, apenas 20% de nossas crianças estavam adequadamente alfabetizadas, segundo a mesma avaliação.

Não é por acaso que o governador Belivaldo Chagas propôs o Programa Alfabetizar Pra Valer, em regime de colaboração com os municípios, amplamente inspirado na experiência do Programa de Alfabetização na Idade Certa implementado no estado do Ceará. Entre a aprovação da lei, sua regulamentação e providência para contratação de bolsistas, tivemos a eleição municipal e a irrupção da pandemia. Hoje temos todas as condições de fazer a decolagem do Programa. O material impresso já está com os municípios; o pessoal já está contratado e o sistema de controle e monitoramento de frequência e aprendizagem está pronto.

Em nome das crianças que não conseguíamos alfabetizar na idade certa com atividades presenciais; em nome das que não tiveram acesso precário aos materiais arduamente produzidos por suas professoras, dos que não puderam ter a assistência de mães ou parentes alfabetizados, das que viram agravadas suas precárias situações, precisamos retornar urgentemente às atividades presenciais. A dor delas, como diria Chico Buarque, não sai nos jornais. Mas quem foi formado no pensamento de Paulo Freire vê, escuta, sente e age.

[*] É secretário de Estado da Educação, do Esporte e da Cultura - Seduc -, e foi reitor da Universidade Federal de Sergipe e da Universidade Federal da Integração Latino-Americana no Paraná.